Dois maços

fumaça

Enquanto eu manobrava para estacionar na vaga de sempre, à esquina da lanchonete, percebi que você já me esperava ali, recostada ao poste. Estava de costas, mas nem isso nem o casaco longo que te caía até a metade das coxas me impediram de reconhecê-la. Pudera. O facho amarelado de luz da lâmpada de sódio a alumiava de cima para baixo, realçando o tom avermelhado dos seus indefectíveis cabelos, que se pronunciavam para além da boina que usava e que te conferia um certo ar blasé. Antes de eu apear do carro, fiz como sempre fazia: fiquei te observando através dos vidros um tanto embaçados e, dali, achei entre poética e teatral a forma lânguida como você levava o cigarro à boca e, após tragar com certa displicência, expirava com delicadeza a fumaça, que se dissipava aos poucos, em formas aneladas e confusas. Corri o olhar pelo seu corpo e só então me detive no seu pé esquerdo, inquieto. Com o calcanhar fixo, você executava movimentos contínuos, tocando o ponta dos sapatos continuamente no chão, feito um bate-estacas, numa frequência incrível de muitas vezes por segundo – cacoete pelo qual a sua ansiedade se manifestava.

Eu estava, se tanto, a dois passos de ti, quando você se virou, como se despertasse do transe em que se encontrava imersa. O abraço que eu começava a esboçar estancou quando você se antecipou em um movimento brusco, estendendo o braço esquerdo com a mão espalmada, denotando certa repulsa. Seus lábios trêmulos pronunciaram com dificuldade, quase num sussurro: “Acabou”. Assim que a última sílaba dessa única palavra acabou de morrer, você desatou num choro silencioso e úmido, com lágrimas grossas a descer pelo seu rosto feito sereno. Um tanto atordoado, busquei sinais ou outros elementos que me ajudassem a entender o que, de fato, acontecia. A sua mão trêmula segurando o cigarro aceso que deitava cinzas no chão; os mesmos brincos que você usava no dia em que nos conhecemos; o uniforme de garçonete por debaixo do casaco; a sua bolsa com o zíper aberto, qual você tivesse partido às pressas. Devo ter congelado sem reação, com feição de nada, porque senti como se um frio súbito me tirasse de órbita. Como se quisesse eliminar quaisquer dúvidas, você repetiu, mas desta vez com um quê de rispidez: “Acabou, está me ouvindo?”.

Foi como se uma fenda tivesse se aberto no tempo e me reconduzido a minutos atrás, quando eu estava saindo de casa. Assim que girei a chave na fechadura, dei de cara com dona Ézia, a vizinha sempre sorridente, que abria a porta para jogar o lixo fora. Enquanto eu a cumprimentava com um meneio de cabeça, o gato dela – amarelado e gorducho, de nome Tom – escapou por uma fresta e disparou em direção à rua. Um carro que acabara de dobrar a esquina freou a um átimo de passar por sobre bichano, o que arrancou um grito agudo da senhorinha. É como se eu já tivesse vivido aquela cena: “Déjà vu”, pensei. Imediatamente, um calafrio chispou meus ossos. Sempre associei déjà vu a um mau presságio que, invariavelmente, precede algo drástico. Tinha sido assim quando sofri aquele acidente na estrada vicinal e quando fui demitido do meu penúltimo emprego. Logo, no entanto, dona Ézia voltou com Tom aninhado em seu colo. “Está tudo bem, filho. Foi só um susto”, observou, afável. Com um movimento de mãos, afastei os pensamentos incômodos, trazendo de volta o pêndulo à razão. “Déjà vu… Que besteira a minha. Superstição pura”, murmurei para mim mesmo, enquanto punha a chave na ignição.

Quando voltei a mim, fiz menção de tomar a palavra, mas você se adiantou. “Acabou”, repetiu mais uma vez e virou as costas, com seu andar de corsa, partindo em direção ao lado oposto do fluxo de carros. Deixou comigo o cigarro fumado pela metade e ainda aceso, com uma marca de batom vermelho no filtro, um pouco abaixo do ponto onde estava grafada a logomarca do produto: três anéis entrelaçados. Tirei o chapéu e me sentei à sarjeta e, mesmo sem nunca antes ter fumado, levei o cigarro à boca e o consumi em tragadas vacilantes, como quem aprende como fazer. Tentava ver lógica nas formas da fumaça, enquanto pensava que era você que eu punha pra fora naquelas baforadas – e isso me deu certo alento. Quando terminei, ajeitei o chapéu na cabeça, empertiguei-me com dignidade e caminhei até o bar, no meio da quadra. Estendi a bituca à atendente: “Quero dois maços deste aqui”, pedi, apontando ao símbolo impresso no filtro. Meti-os maquinalmente no bolso no paletó. Desde então, tenho fumado com certa regularidade, como se me livrasse de ti aos poucos.

Curitiba, 21 de maio de 2020

“Butterfly”

butterflyTenho muitas cismas para com o inglês. Uma delas é insuperável: a sandice de se usar o mesmo verbo para “ser” e para “estar”. (Como bem pontuou Caetano, “gosto de ser e gosto de estar”, ora essa!). Outra bronca diz respeito a uma inaptidão minha, de não conseguir dobrar a língua para articular o “th”. Paciência… Mas, nos últimos tempos, tenho encasquetado mesmo é com o modo como a língua inglesa faz minguar a poesia de algumas palavras, tornando-as insossas.

O caso mais recente me veio às ideias ontem pela manhã, quase como epifania. Por algum motivo aleatório, pensei em “butterfly”. Só então me dei conta de que a palavra é formada por “butter” + “fly”. Manteiga que voa? Não é possível! Não pode ser!

Minha opinião é enviesada, eu sei. Mas note como é mais saboroso em português: borboleta. É como se cada sílaba batesse asas dentro da boca da gente, antes de ganhar forma e significado pelos ares: bor-bo-le-ta! De uma fuçada, vi que uma das teorias relaciona a origem etimológica da palavra a belo. Borboleta derivaria de “belbellita”, duplicação de “bellus”, no diminutivo (em “Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa”, de José Pedro Machado).

Borboleta também tem um apelo pra lá de poético em italiano. Em “O Carteiro e o Poeta”, o protagonista Mario Ruoppolo (o carteiro) havia acabado de aprender “fazer metáforas” com Pablo Neruda. Perdidamente apaixonado por Beatrice Russo, ele apela para a poesia: “Il tuo sorriso si expande come uma farfalla”, tenta, quando a bela passa. “Farfalla”. Quase um sussurro, tão suave quanto a própria borboleta.

A “farfalla” ajudou o carteiro a conquistar sua Beatrice. E se fosse “butterfly?”. Pobre Mario…

Sobre rezas e afins

A casinha era de alvenaria, mas muito simplória, com janelas um tanto carcomidas pela ferrugem e paredes descascando de tal modo que era impossível lhe determinar de que cor, originalmente, eram. Apesar da humildade inconteste do imóvel, havia ali uma aura de templo. Não pela aparência, mas para o que nos representava. Era para lá que os pais nos levavam, quando nós, as crianças, éramos acometidos de males que não soavam como tão urgentes a ponto de demandar médico. Contornava-se a casa por um corredor à esquerda e se chegava aos fundos, onde, sob um teto de zinco, recebíamos os cuidados de Don’Ana, a benzedeira da vila.

Com um misto de fascínio, medo e respeito, eu a via surgir pela porta dos fundos, miúda, de cabelos cor de cinza e muito curtos, e que vinha com um sorriso resplandecente a contrastar com as cores sóbrias do vestidinho que sempre usava. O ritual dependia de o quê o paciente padecia: quebrante, susto, vento-virado, machucadura, encosto ou cobreiro. Em regra, Don’Ana nos benzia com galhinhos de arruda, enquanto murmurava rezas ininteligíveis, como se concentrasse em si toda a fé do mundo. Por fim, dava-nos para beber uma infusão secreta (“uma água suja”, pensava eu), enquanto nos lembrava: “Só encontra a cura quem acredita”. No fim das contas, a gente “sarava” do que quer que fosse – não sei se por acaso, por fé ou pelos dons da velhinha.

A última vez que visitei benzedeiras foi no finzinho de 2014. Não as procurei por precisar de seus préstimos, mas para ouvi-las para uma reportagem. Quando chegamos à casa de uma delas, Dona Geni atendia, então, um operário que a procurara por estar entrevado por uma dor no ombro. Enquanto vociferava sua oração, a senhorinha cosia um retalho de pano, com os olhos fixos em um prato com água fervente posto à pia e sobre o qual jazia uma tampa de metal. Conforme a reza avançava, a água borbulhava, fazendo trepidar a vasilha. “Se fez bolha, é porque tem espírito ruim, que tá saindo”, anunciou a benzedeira, com feição séria de feiticeira, escorada sobre sua bengala de madeira.

Enquanto registrava cena, o fotógrafo Brunno Covello, que me acompanhava na pauta, suspirou: “Meu, de repente, bateu um calorão!”. De seu lugar, Dona Geni explicou com a maior naturalidade: “É que você tá no caminho da porta, que é por onde os espíritos ruins tão indo embora”. Apesar de ser mais ateu que um pedaço de madeira, até o Covello, naquele instante, se arrepiou. Por fim, o bom retratista acabou ganhando uma benzida para cobreiro (a saber, uma irritação na pele), mas que não lhe surtiu efeito. Ah, homem de pouca fé!

Na mesma empreitada, uns quarteirões adiante, encontramos outra rezadeira, em um casebre à beira de um córrego, nos recônditos da CIC. Dona Dorva era uma senhorinha atarracada e de pouca prosa, que já vinha cansada pelas décadas através das quais vinha exercendo o que chamava de sua missão: interceder pela cura de quem quer que lhe procurasse, sem pedir nada em troca. Sonhava, então, “passar o dom” para sua neta. Coisa de um ano depois da publicação da reportagem, recebi um e-mail: Dona Dorva havia morrido. Ainda hoje me pergunto se a neta dela se interessou em dar continuidade ao nobre ofício da avó. Ainda hoje recebo mensagens, clamando pelo contato das rezadeiras (o que não tenho, registre-se).

Para além do aspecto sobrenatural (ou divino) da coisa, tenho pra mim que a essência do fazer dessas mulheres está correlacionada à tradição segundo a qual a cura para os nossos males está disponível na natureza – e como se quisesse reforçar de onde viemos. Quando eu era moleque, os remédios estavam logo ali, no quintal. Para dor de barriga, chá de hortelã. Para dormir, camomila. As avós sempre tinham uma receita milagrosa, que faziam crer que losna, carqueja, boldo, cidreira, capim-limão e afins eram ingredientes cotidianos. Tudo colhido à mão e na hora. Nada dessas ervas vendidas em supermercados, que vêm em saquinhos insípidos. Uns anos atrás, vi que essa cultura ainda se mantém vívida na Bolívia, pelas mãos das cholas que comungam em sagrada relação com a Mãe Terra (Pacha Mama, em quéchua).

Lembrei-me disso tudo, filosofando em vão numa dessas noites de insônia. Pois é. Basta que eu encoste a cabeça no travesseiro para que o sono se evapore. Só durante a manhã seguinte é que Morpheus dá as caras, fazendo me pesarem as pálpebras, de tal modo que nem café dá jeito. Tenho pra mim que é quebrante. Vá saber. Sem uma benzedeira, não há como fechar diagnóstico e, pior, não há reza para restituir meu sono de beleza. Também já não tenho um quintal como o da infância, que me caía como panaceia. Por sorte, paliativamente, conheci o mulungu, uma planta medicinal que tem me garantido ao menos umas horas de bom repouso. É desses comprados em casas de produtos naturais, mas fazer o quê? É o que temos. Mas que uma benzidinha cairia bem, isso cairia.

 

Crônica originalmente publicada em 29 de março de 2019, no Plural.

A lista sem fim

A lista era tão extensa, tão extensa, que eu deixei de atualizá-la já há alguns anos. Não sou sequer capaz de apontar com exatidão onde ela se encontra. Sei que está em algum arquivo digital, perdido entre os gigabites do meu antigo notebook, em que raramente toco. Talvez eu a tenha deixado ali, inconscientemente, como quem oculta um segredo irrevelável. Muito de vez em quando e às escondidas, procuro-a sorrateiramente, clico duas vezes sobre o iconezinho, fazendo se materializar na tela diante de mim o motivo de uma das minhas vergonhas obtusas: o rol de livros obrigatórios que nunca li. Conforme faço o cursor avançar sobre as linhas que elencam os títulos – que se contam às centenas –, sou acometido de uma sensação de culpa e da certeza de que não passo de uma fraude. É em vão. Trata-se de uma batalha perdida, senhoras e senhores.

Lembrei-me da lista por causa de Truman Capote. Confesso, aqui, uma das minhas misérias pessoais: nunca li A sangue frio. Há um bom tempo, no entanto, venho disposto a corrigir essa falha de caráter e tenho procurado pelo título feito um perdigueiro. Farto de, sem o menor sucesso, zanzar por livrarias e casas do ramo, passei a procurar um exemplar pela internet. Algumas semanas atrás, um site me apontava que havia um volume dando sopa em um sebo perto da catedral. Fui direto ao balconista e, sem sequer desejar-lhe “boa tarde”, já fui perguntando pelo famigerado.

“Xi, moço! Você ‘tá sem sorte. O A sangue frio’ foi vendido hoje, no fim da manhã”.

Até tive ganas de praguejar feito um excomungado, mas me resignei, em boa medida, por causa de um porém: ainda que eu tivesse voltado triunfante, com o exemplar debaixo do braço, sabe deus quando eu conseguiria encaixar a leitura no meu cotidiano bagunçado, que transcorre aos atropelos. Assim que cheguei em casa, isso se tornou mais evidente. Em cada cômodo, tropeço neles, os livros que comecei a ler, mas que jazem pela metade, com um marca-páginas fincado em suas entranhas. É como se reivindicassem minha atenção ou se quisessem expor o meu fracasso a quem quer que apareça pra um café.

No braço do sofá, ao lado de uma resma de páginas por revisar, está O nosso reino”, de Valter Hugo Mãe. Salvo engano, interrompi a leitura no ponto em que Carlos morre. Gosto das observações do protagonista, que tem um quê de santo. No meu quarto, sobre a banqueta que faz as vezes de criado-mudo, estão duas releituras (Fernando Pessoa e Febeapá”, do Ponte Preta – que soa atual ao Brasil de agora, diga-se), um exemplar de crônicas de boteco, do Aldir Blanc, e uma coletânea de textos imbatíveis de García Márquez. No gabinete do banheiro, permanece um livreto de Manoel de Barros.

Nem só de papel vive um leitor em pecado. Desde o ano passado, aderi a mais uma “modernidade” e passei a usar um Kindle para as leituras em que sacolejo no ônibus, espremido, a caminho do trabalho. Na telinha, vinha apegado a Por quem os sinos dobram” (Hemingway), mas me vi obrigado a interromper temporariamente a leitura já no finzinho, em que Robert Jordan, enfim, está prestes a explodir a ponte. Tudo por culpa de Ana Terra” (Érico Veríssimo), que encontrei na Tuboteca, em uma edição velhinha. Tem ainda o Honra teu pai” (Gay Talese), que desponta na pilha da escrivaninha, com a trajetória da família Bonano.

Na estante da sala, ainda aguardam pacientemente a sua vez a biografia do Chaplin, os dois volumes de Os miseráveis (Victor Hugo) e A hora da estrela (Clarice Lispector). Ainda assim, no domingo retrasado fui à feirinha do Largo e, num arroubo, arrematei uma edição de capa dura e cheirando a traça de Os trabalhadores do mar (Victor Hugo), por módicos dez reais. Só não trouxe um Jorge Amado, porque me contive. (E olhe que o vendedor tem bons argumentos: “Na dúvida, leve mais de um”, diz).

Vez ou outra, dou com a máxima atribuída ao argentino Jorge Luis Borges, para quem o paraíso seria uma biblioteca cheia de livros. Em tempos de redes sociais, achei por bem checar. No fim das contas, não é que a frase é dele mesmo? Está em “Poema de los dones”: “Lento en mi sombra, la penumbra hueca/ Exploro con el báculo indeciso,/ Yo, que me figuraba el Paraíso/ Bajo la especie de una biblioteca”. Fiquei matutando. Com os volumes todos a me espreitar da estante, pensei na planilha dos “não lidos”, que só faz aumentar, ainda que mentalmente. Nunca a vencerei. Talvez o paraíso até possa ser uma biblioteca, mas desde que tenhamos, de fato, toda a eternidade para ler. Porque a lista, Borges, a lista não tem fim.

 

Crônica originalmente publicada em 22 de março de 2019, no Plural.

Liberal, pero no mucho

Assim que entrei no carro do motorista de aplicativo, foi impossível não notar os indefectíveis versos do clássico de José Augusto. O refrão desaguou ainda antes de a corrida começar e, enquanto me acomodava no banco traseiro, inventei de fazer graça e cantei junto, arremedando os trejeitos do cantor romântico de antanho: “Agora aguenta coração/ Já que inventou esta paixão…”. Satisfeito, o chofer – um velho de cavanhaque branco e com pinta de bicheiro – abriu um sorriso largo. “Meu pen-drive tem feito sucesso”, disse, antes de começar uma manjada lenga-lenga calcada em preconceito musical, como se as gerações anteriores fossem melhores e mais educadas por terem ouvido, por exemplo, Ritchie e Fagner – que vinham logo a seguir, na playlist do figura.

Só então percebi que meu gracejo havia aberto uma porta perigosa. (Há quem diga que, assim como os taxistas, certos condutores de aplicativo têm carteirinha de reaça). Fechei-me em copas, mas a Mariana – que, por ter bom coração, é incapaz de cometer um ato de grosseria – deu ouvidos ao nosso interlocutor, que descambou a conversa para a política. Um tanto envergonhado, acabou admitindo que votara no Capitão, mas justificou, argumentando que só o fez “pra tirar aquela turma”, porque o único candidato “que prestava” (o tal do “Novo”) não tinha chances. Em seguida, atacou as cotas raciais, mas vislumbrou um Brasil ideal em que as escolas fossem todas (todas!) estatizadas.

Do meu canto, pensei em protestar: “Pô, amigo! Ou você vota no Amoêdo ou você defende a estatização do que quer que seja. Os dois não dá!”. Talvez seja reflexo da idade, mas tenho ponderado que não vale a pena bater palmas pra maluco dançar, de modo que permaneci quieto. Em seguida, voltou sua metralhadora de asneiras ao aspecto moral e só faltou usar a expressão “ditadura gayzista”. Resisti ao suplício com estoicismo e só não me atirei do carro em movimento, porque queria chegar o quanto antes ao botequim. Fui obrigado a tomar umas cervejas a mais para me refazer da exposição à ladainha do velho – e coloco na conta dele os eventuais excessos que eu tenha cometido naquela noite.

A linha de raciocínio do chofer de aplicativo, contudo me parece longe de ser exceção e talvez até traduza bem a essência do “Liberalismo à brasileira”, resumido pelo mote “liberal na economia, conservador nos costumes”. Soa como um pastiche paradoxal: um Estado enxuto, que interfere minimamente no mercado, que passa a bola da regulação e dos serviços à iniciativa privada, mas que tem tempo e disposição para se ocupar dos orifícios alheios. E, neste ponto, justiça seja feita: como este governo gosta de cuidar dos cus de seus concidadãos (desculpem-me o palavrão)! Episódios não faltam. Não vou me dar ao trabalho de enumerar – e você, aliás, já deve estar de saco cheio.

Às vezes, esse salsicheiro danado chega a dar um nó nas ideias do caboclo. Nesta semana, mesmo, eu esperava o ônibus, que estava um tanto atrasado, quando um cidadão de bem começou a discursar contra a (má) qualidade do transporte público. Com dedo em riste, bradava que o mais lógico seria “privatizar tudo, que coisa pública não presta mesmo”. “É tudo um antro de corrupção”, esbravejou. Desta vez, no entanto, arrisquei uma tímida intervenção: “Olhe, senhor… já é privatizado. Quem toca o sistema de ônibus são empresas privadas”. Pra quê? O homem vociferou que essa era só a minha opinião e fim de papo. Quando o coletivo, enfim, aportou na estação, o sujeito entrou pisando duro, não sem antes me lançar um desaforo: “Comunista!”.

Fosse assim tão bom, não haveria uma onda considerável de reestatizações, conforme assinalou reportagem do UOL, publicada na semana passada. Segundo estudo do holandês Transnational Institute (TNI) – que embasa a matéria – , desde o ano 2000, pelo menos 884 serviços que haviam sido repassados à iniciativa privada voltaram a ser estatizados, em síntese, porque priorizavam apenas o lucro e, em razão disso, estavam “caros e ruins”. “As reestatizações aconteceram com destaque em países centrais do capitalismo, como EUA e Alemanha”, assinala o texto, da repórter Juliana Elias.

Você até pode fazer coro ao camarada do ônibus, ali de trás, e dizer: “Ah, mas há corrupção generalizada no serviço público”. Se a preocupação fosse bem essa, penso que deveria haver um punhado de gente se descabelando em praça pública, dando faniquito, por exemplo, pelos assassinatos cometidos de forma calculada com frieza pela Vale (privatizada na onda liberal do FHC, registre-se) e pelo esquema arraigado de desvios nas concessionárias de rodovias que operam aqui na província. Cadê?

Enfim… lembrei-me de um meme que circulou esses tempos atrás e que virou até fantasia de carnaval país afora. Em primeiro plano, aparece um homem vestido socialmente, com gravata borboleta e tudo. No entanto, o espelho postado na parede logo atrás denuncia que o personagem traz toda a retaguarda descoberta – e revela que usa lingerie e cinta-liga. A legenda: “Conservador nos costumes… Liberal na economia”. Eu ri, mas estou escaldado com essa prosa. A partir de agora, por via das dúvidas, sempre que pegar Uber, só falarei sobre futebol.

 

Crônica originalmente publica em 15 de março de 2019, no Plural.

Cinzas

Após a última marchinha, as luzes do salão se acendiam, indicando que deveria ser o fim do carnaval. Mas, como era terça-feira, havia uma tradição: os músicos do conjunto, com instrumentos de percussão e metais em mãos, saiam em fila indiana, seguidos pelos foliões remanescentes, que entoávamos: “Atrás da banda/ Atrás da banda/ Eu vou, eu vou, eu vou/ Toca, toca bandinha/ Que atrás da banda/ Eu vou na minha”. O cordão seguia, então, até a praça em frente ao clube, como se quisesse estender a festa até mais e mais além, varando a madrugada. Mas quando o sol nascia, não tinha jeito. Era fim de carnaval e ponto. Sem alternativa, minha irmã e eu pegávamos o caminho de casa e, ao longo do caminho, dávamos de frente com as velhas beatas, que rumavam à missa de cinzas – e que faltavam fazer o sinal da cruz quando topavam conosco, como se fôssemos assombração ou merecêssemos a excomunhão. Era Quarta-Feira de Cinzas.

Quarta-Feira de Cinzas sempre me soou como um dia estranho. É como se fosse um domingo, só que prolongado, potencializado, em que o tédio se mistura a uma paúra depressiva, sem que se precise, para isso, da trilha do Faustão. Quase o prenúncio de uma segunda-feira que, irremediavelmente, vai se estender por meses a fio. Não tem jeito. Invariavelmente, fico com um certo gosto amargo na boca – e nem estou falando de ressaca. Talvez, inconscientemente, nos pese o fato de sermos obrigados a esperar mais um ano para o “sanatório geral”. Talvez nos ressintamos dos amores fugazes que nos escaparam por entre os dedos ou, quem sabe, dos que não aconteceram – é aquela história: “a vida que poderia ter sido e não foi”. Talvez o melhor mesmo seja nos unirmos às velhas beatas e cairmos em penitência.

Se a Quarta-Feira de Cinzas calhar de cair num dia trevoso e chuvisquento, como a desta semana, então, nem se fala. Sei lá. Parece castigo, o universo nos dando na cara ou algo que o valha. Tudo bem que não sou mais tanto de folia, como fui em outros carnavais, sambo com os indicadores em riste, feito turista gringo e tudo, mas sei um repertório considerável de marchinhas e tenho lá meu ziriguidum. E daí? De nada me vale. “Pô, até ontem havia bloquinhos, escolas de samba, a banda do Xapoca e do Jack. E Agora?”. Agora, a vida real. Enfim, o troço todo só não se mostrou pior, porque – graças aos céus – não vi ninguém postar “Todo carnaval tem seu fim” nas redes sociais. Ufa!

Um parêntesis para registrar pelo menos um alento na cinzentisse: a Mangueira veio como desforra a esses tempos sombrios em que pessoas têm orgulho da própria ignorância. Com “Histórias pra ninar gente grande”, a Verde e Rosa cantou heróis que não estão nos livros de escola. Uma ode a “índios, negros e pobres” e, mais uma vez, a lembrança de Marielle Franco, cuja morte está prestes a completar um ano. (A propósito: quem matou Marielle?). O triunfo carioca se juntou ao da Mancha Verde, de São Paulo, que levou à avenida um desfile igualmente emblemático, em que discutiu a escravidão, direitos dos negros e das mulheres e intolerância religiosa. Carnaval é política, é contestação, embora haja quem queira fazer crer que a festa se restrinja a mijo (“O que é golden shower?”).

Já no fim da noite, quando a Quarta-Feira de Cinzas estava a alguns minutos de seu fim oficial, ouvi alguns acordes. Fui à janela e, maravilhado, constatei que começavam uma serenata, do lado de fora do prédio. De onde estava, pude ver dois rapazes no meio da rua – um ao violão, outro ao pandeiro – tocando para que outro, da calçada, começasse a cantar. “Meu coração, não sei porquê/ Bate feliz, quando te vê…”, atacava, como se se dirigisse a alguém do segundo andar. Debrucei-me para contemplar melhor, enquanto algumas luzes dos apartamentos vizinhos de acendiam. Enlevado, disse para mim mesmo: “Mesmo nessa treva toda, ainda há poesia”.

Mas era Quarta-Feira de Cinzas. Do quarto andar, alguém rugiu: “Vamos parar com essa merda aí!”. Outro carrancudo ainda acrescentou um “Eu vou chamar a polícia!”, antes que a rapaziada colocasse a viola no saco e batesse em retirada, interrompendo a cantoria. É, amigo… nem Pixinguinha é capaz de embevecer um curitibano em noite de cinzas. Tenho pra mim que esses resmungões não devem conhecer os versos e a melodia de Vinícius e Carlinhos Lyra: “E no entanto é preciso cantar/ Mais que nunca é preciso cantar/ É preciso cantar e alegrar a cidade”, que, por acaso, leva o título de “Marcha da Quarta-Feira de Cinzas”. E, como vocês sabem, Quarta-Feira de Cinzas é um dia estranho.

 

Crônica originalmente publica em 8 de março de 2019, no Plural.

Coisa de criança

Assim que desembarquei no terminal, o céu desatou a despejar chuva em tamanho volume e de forma tão ininterrupta, que cheguei a pensar que estaria diante de uma segunda edição do dilúvio. Ainda que tivesse em mãos o velho guarda-chuva, ele de pouco me valeria ante o aguaceiro inclemente que não deixava indício de trégua. Resignei-me, não sem uma ponta de mau humor. Ao lado, um meninote – devia ter uns sete anos, se muito – passou e me espiar com curiosidade, de mãos dadas com a mãe. Assim que nossos olhos se encontraram, mostrei-lhe a língua com ar de troça, ao que ele devolveu escancarando uma careta. Rimos os dois. Foi o garotinho quem puxou conversa:

– O que é que você faz, moço?

– Eu escrevo.

– Escreve? O quê?

– Sobre tudo… e sobre o nada. Às vezes, coisas que interessam às pessoas. Outras vezes, o que eu escrevo não interessa a ninguém.

– Que engraçado! E o que você vai ser quando for criança?

Enquanto eu ponderava sobre a pergunta, suspirei em reticências, sem saber o que dizer. Nisso, a mãe do meu pequeno interlocutor o puxou pelo braço, interrompendo a nossa prosa: “Deixe o moço em paz, Juan!”, disse, já saindo feito um tiro em direção a um ônibus que acabava de estacionar em um dos pontos adiante. Lá se foram os dois a bordo do coletivo, deixando-me com o dilema atirado pelo menino. Mas que diabos! Dei de ombros à chuvarada e saí com os pingos grossos a ensopar minha roupa, à medida que eu cismava com aquilo. Cheguei em casa encharcado como se tivesse atravessado o oceano a nado… e completamente sem resposta.

Agora, revisitando o episódio, tudo me parece mais claro. Ora, se eu voltasse a ser criança eu seria Manoel de Barros. Estalo os dedos, corro à estante, alcanço meu exemplar de “Menino do Mato” – que por muito tempo ficou à cabeceira – e o abro aleatoriamente. “Eu queria pegar na semente da palavra”. Está vendo! Tento outra: “Eu vivo do meu relento”. E ainda: “Visão é um recurso da imaginação para dar às palavras novas liberdades?” ou “A gente não gostava de explicar as imagens porque explicar afasta as falas da imaginação”. Ora, era óbvio. O velho poeta pantaneiro evoluiu tanto em sua existência que voltou a sentir como um infante. Eis aí!

Essas carraspanas têm o poder de nos tirar subitamente do piloto-automático. É como se, de repente, nos mostrassem uma dimensão a que desaprendemos a ver, por termos puro condicionamento. Talvez bastem olhos e ouvidos atentos e um mínimo contato com crianças para reabrirmos esse portal. É aí que se dá peso exato aos acontecimentos e, assim, a vida flui com mais leveza. Creio que seja universal, porque tenho visto, deliciado, esses despertares catalisados pelos pequenos, por meio de passagens tornadas públicas em redes sociais de mães e pais do meu círculo. (Estão aí as peripécias dos “2 piás” da Dani e as “Claricices” da Joana, para servirem de exemplo). Você mesmo, enquanto me lê, deve estar se lembrando de uma ou outra peça da criançada do seu convívio.

No meu caso, o que me transformou – para melhor, creio – foi o nascimento da Julia, minha sobrinha. Na condição de tio e padrinho, tenho a prerrogativa – quiçá o dever – de estragá-la. Assim, foi por minha obra que, pela primeira vez, a Juju tomou chuva, entrou no rio, se pintou de palhaço e pegou um violão. Mas, por mais piegas e clichezento que pareça, sou eu quem tenho aprendido com ela a contato, ao longo desses sete anos e meio. É que ela tem uma sensibilidade e um coração tão imensos, proporcionais ao sorriso que me põe no rosto quanto está por perto. Em silêncio, penso: “Putaqueopariu, a vida é boa!”.

Sempre que me visita, a Ju se encanta com as minhas Olivettis, como se as visse pela primeira vez. “Põe um folha?”, pede e, em seguida, datilografa cartas, com as quais me presenteia, junto com desenhos de toda sorte. Também é dada a inventar palavras, como “deslembrar”, que, conforme ela argumenta, tem significado mais exato do que “esquecer”. Gosto de lhe perguntar com o que sonhou e de saber o que pensa sobre as mínimas coisas. Quando tinha quatro anos, por exemplo, veio com uma boa: diferentemente das amiguinhas, não queria ser mãe. “É que filho dá muito trabalho e eu quero ser professora”, justificou. Dia desses, deu uma bronca no meu pai, que gozava dos modos espalhafatosos com que se vestia um funkeiro na tevê. “Você é ele, vovô? Então deixa ele”, tascou.

Uma das grandes lições que as Jujuzices mantêm vívidas é que a vida urge e, por conseguinte, há que vivê-la, dia após dia. Sem esquecer de si mesmo. Sem esquecer de quem se é. Quando a tarde já se vai pela metade e ela considera que ainda não desfrutou em sua plenitude, reivindica seu direito inalienável à felicidade, com intensidade máxima: “Eu não tô me divertindo! Já é tarde! Eu preciso me divertir!”, diz, exasperada, como quem carece de cumprir uma obrigação ou como se fosse uma adepta de primeira hora à filosofia do Carpe Diem. E lá vamos nós, inventar alguma brincadeira. À noite, Julia luta às últimas forças para não se entregar ao sono e aproveitar o dia até o último quinhão. É ela quem me deixa claro, por seu exemplo, que a vida é uma sequência de hojes. Coisa de criança…

(De minha parte, já me vou. As horas já se avançam e ainda não me diverti.)

 

Crônica originalmente publicada em 1º de março de 2019, no Plural.

O vendedor que não desistia

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Postado diante da mesinha mambembe armada em pleno calçadão, o homem fatiava uma cabeça de repolho com elogiável destreza. Enquanto reduzia a hortaliça a um amontoado de tiras milimétricas, apregoava o instrumento que tinha em mãos: “Vejam que maravilha da cozinha! Descasca a cenoura, corta a verdura! Olhem como é fácil!”. Embora estivesse vestido de maneira simples – tênis gasto, calça e uma camisa que parecia um tanto maior –, tinha a elegância de um maître. O produto que colocava à venda não tinha nada de sofisticado: consistia em um cabo plástico alaranjado que terminava em uma forquilha, na qual estava afixada uma lâmina afiada. Nada mais. Mas a forma como ele o anunciava – sempre com voz clara, pronunciada com entonação de locutor e ornamentada por um sorriso de indelével confiança – fazia crer que, de fato, se tratasse de um utensílio indispensável.

Eu já havia topado com o vendedor em outras ocasiões – na entrada de um supermercado, nos arredores da feirinha do Largo ou ali mesmo, no calçadão –, mas naquele comecinho de tarde ele me chamou a atenção em especial. Talvez porque o entusiasmo com que enumerava as qualidades do item que vendia contrastava com os modos insossos de seus colegas ambulantes: uma jovem a serviço de uma operadora de celular, um rapaz que oferecia carregadores para smartphones e um homem de maus bofes, que portava uma placa em que se lia “compro ouro”. Esses pareciam estar ali a contragosto, entediados e sem o mínimo resquício de orgulho do próprio ofício, ao passo que o homem continuava a bradar as maravilhas do descascador de verduras, como se desempenhasse a mais nobre das profissões.

Parei para contemplar. Apesar de todos os salamaleques do mercador e de sua apresentação resoluta, quase ninguém dava por ele. Nos cinquenta minutos em que fiquei ali, de butuca, apenas duas freiras e uma senhorinha desviaram o olhar para o vendedor por uns poucos segundos, mas nem sequer chegaram a parar para ver o funcionamento do utensílio fabuloso. Não vendeu um descascadorzinho que fosse. Nem por isso, no entanto, o homem esmoreceu. Resiliente, permaneceu anunciando seu produto, qual falasse para um público seleto que lhe desse plenos ouvidos. Apesar de tudo – ou melhor, do nada – ele seguia, com fé inquebrantável.

Quando o relógio me chamou de volta à rotina, parti, dividido. Por um lado, sentia pena do pobre homem, porque apesar de toda devoção que dispensava ao seu ofício, o sucesso profissional lhe passara longe. Fico me perguntando se naquele dia ele voltou pra casa com o gosto do fracasso na boca, depois de ter passado o dia em pé, gastando seu latim ininterruptamente e em vão. Não deve ser fácil. Por outro lado, no entanto, era louvável adignidade que aquele camelô mantinha, cumprindo sua ventura e entregando o melhor de si. Creio que, apesar de tudo, naquela noite ele deve ter dormido o sono dos justos e, nos dias seguintes, persistido até tempos mais favoráveis.

Agora por esses dias, no finzinho de dezembro, lembrei-me do ambulante durante uma conversa com ela, enquanto olhávamos o ano em retrospecto, em uma espécie de balanço. Foram meses difíceis, é escusado dizer. (A vida, às vezes, nos mete em um emaranhado tal, que nem um abraço é capaz de proteger). Para ela, no entanto, o fardo parece ter sido maior. Alguns acontecimentos quase a tiraram de seu curso, enquanto, em outra seara, outros quase a puseram estática. A quantos não devem ter ocorrido dissabores em série, de forma semelhante? Ao longo da prosa, o episódio do mercador do calçadão emergiu como ensinamento. Pode soar elementar, mas em meio a turbilhões acabamos por nos esquecer do óbvio. O que eu queria que ela se lembrasse neste novo ano é de que há ocasiões em que nos cabe apenas isso, mesmo: pôr um sorriso no rosto e seguir com nosso propósito com determinada convicção e integridade. Há que persistir. Como o vendedor.

 

Crônica originalmente publica em 16 de janeiro de 2019, no Plural.

A carne mais barata

Em um domingo qualquer de verão, eu caminhava em direção à pensão em que morava, na Rua São Francisco. O ano era 2009, de modo que a via ainda estava a alguns anos de passar pelo festejado processo de “revitalização” que atrairia uma dezena de bares de classe média e uma legião de jovens descolados. Àquela altura, a rua continuava a ser uma espécie de cracolândia: uma viela obscura e inóspita, com vultos maltrapilhos se esgueirando pelos cantos, cachimbos improvisados à mão. À noite, sempre que eu descia para usar o orelhão, dava de cara com algum desvalido encolhido, estourando crack em pipadas rápidas. Nunca me dirigiram palavra pra pedir uma moeda que fosse.

Naquele domingo, contudo, o sol ainda não havia se posto e eu ia tranquilo, proseando com o Galão, que me acompanhava. Uns metros atrás, vinham dois rapazes como nós, com uma única diferença: eram negros. Só demos por eles instantes depois que passamos por uma equipe policial que os abordou com truculência ostensiva, com direito a safanões e armas em punho. Voltamos e questionamos os agentes sobre os motivos da revista, já que os rapazes nada tinham feito, além de transitar pela rua como qualquer um. “Fica na sua! Eles têm aparência criminal”, resumiu um dos soldados, com frieza e rispidez. Permanecemos ali, como se a nossa presença pudesse lhes garantir a integridade física. Após o esculacho, sem razão para mantê-los, os militares liberaram os jovens. Enquanto tornávamos a caminhar, Galão observou: “Ser preto deve ser foda…”.

A frase do meu amigo sempre me ecoa nas ideias, principalmente porque resume uma verdade que se tenta manter oculta: vivemos em uma sociedade tingida por um racismo estrutural. Nos anos em que exerci a função de repórter policial (aquele que cobre segurança pública, de delegacia em delegacia) isso se tornou mais evidente. Quando havia “locais de morte” (jargão para ocorrência em andamento, com morte violenta), quase sempre eu me deparava com um cadáver negro crivado de balas (eles representam 74,5% das vítimas, segundo o Atlas da Violência 2017). Quase sempre, a carnificina se dava na periferia, onde predominam moradores de pele escura, como se, por uma condição histórica, tivessem sido impelidos para lá, longe dos cartões-postais e das vistas dos “cidadãos de bem”. Às expensas dos meus esforços, as matérias não rendiam comoções: eram pretos e pobres, distantes dos ares nobres do Batel.

Em um desses plantões, fui parar em um dos rincões da CIC (se não me falha a memória, na Vila Sabará), após a polícia ter informado que havia um “Código 4” (ocorrência com morte). Quando cheguei, por detrás da linha de isolamento do IML, vi que a vítima era um menino negro, que jazia dentro de um bar, perto do balcão. Tinha oito anos de idade e havia sido atingido por uma bala perdida, disparada por alguém que abriu fogo contra o botequim. O garoto morrera segurando a nota de dois reais com a qual compraria uma coxinha. Naquela tarde, até o delegado – um dos bons, por quem tenho respeito – engoliu seco. Tinha um filho da mesma idade da criança assassinada e a comparação lhe foi inevitável:

“Meu filho é branco e mora em um bairro bom. Nunca vai passar por isso. Já esse povo daqui, é como se já nascesse marcado, predestinado à tragédia”, desabafou, ainda no local do crime. Um pouco adiante, enquanto o IML recolhia o corpo do menino ao rabecão, outros dois moleques – ambos negros – brincavam de carrinho ao lado da fita de isolamento, indiferentes ao sangue, como se nada de extraordinário tivesse acontecido. É como se já estivessem acostumados à violência e à morte. (Como cresceriam?). Quanto a mim, ainda sonho com o garotinho negro assassinado.

Em outra ocasião, a PM fez descer do camburão um homem negro, algemado com as mãos para trás, e o posicionou em frente ao paredão da Delegacia de Furtos e Roubos, apresentando-o como “ladrão” de um estabelecimento comercial. Enquanto cinegrafistas o filmavam, o preso alegava aos repórteres de tevê que era inocente. O oficial, então, o puxou de canto e ordenou que ele se calasse. Talvez tenha o ameaçado, porque, de fato, o acusado não disse mais nada. No dia seguinte, no entanto, o rapaz teve sua voz ouvida. Constatou-se que havia sido preso por engano, confundido com um ladrão, porque estava vestido de modo humilde, porque estava correndo na rua, atrasado… e porque era preto.

Se nas carceragens das delegacias e nas celas do sistema penitenciário eles são mais de dois terços, contam-se nos dedos os negros que estão do outro lado do balcão. Quando estão, chega-se a duvidar deles, como se causasse estranheza o fato de terem uma caneta em mãos – e não um par de algemas. Um desses casos que cobri se tornou emblemático: a advogada Andreia Vitor foi detida e torturada por policiais, ao questionar abusos em uma abordagem, no Bairro Alto. Quando informou que era advogada, foi ironizada – e talvez isso tenha lhe doído tanto quanto as agressões. “Advogada? Com essa corzinha?”, disse-lhe o PM. O processo contra os policiais corre até hoje.

Outro que sentiu na pele o fardo de ser negro foi o advogado Renato Freitas. Quando era candidato a vereador, o jovem foi abordado pela Guarda Municipal, preso por desacato e sofreu humilhações e torturas psicológicas. Em seu depoimento, relatou que os guardas se referiam a ele como “negrinho” e que falavam que gente como ele não chega a advogado. “Diziam que as músicas que eu estava ouvindo eram de favelado e que minha carteira da OAB era falsificada”, contou-me à época, ao ser libertado. Freitas ainda passou por outros maus bocados com a polícia, mas, pelo que pude conhecer dele, sei que vai continuar a peitar o racismo, apesar do preço que paga. Renato é “zica”.

Na quinta-feira da semana passada (14), você deve ter lido por aí ou assistido na tevê: Pedro Gonzaga, de 19 anos, foi imobilizado por um segurança do supermercado Extra, que o estrangulou por mais de cinco minutos, até a morte. Muito já se escreveu sobre o episódio, que teve repercussão nacional, de modo que eu – branco, de classe média e privilegiado – pouco tenho a acrescentar ao debate. Mas é inevitável que me lembre de tudo isso que relatei acima e de muito mais. É diuturno. São muitos Pedros, Andreias e Renatos, a cada dia e em cada canto deste país. Não é possível que consideremos normal que eles continuem morrendo – agora, talvez, sob justificativa de “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Como disse meu amigo: “Ser preto deve ser foda…”.

 

Crônica originalmente publicada em 22 de fevereiro de 2019, no Plural.

Lula livre marca declínio da “República de Curitiba”

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Às 17h41 de sexta-feira (8), o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) surgiu pela lateral do prédio da Superintendência da Polícia Federal (PF) de Curitiba. Vinha acompanhado de um pequeno séquito, formado por alguns de seus advogados e de lideranças petistas, como a presidente do partido, Gleisi Hoffmann, e o ex-ministro Fernando Haddad. Assim que o portão se abriu, a filha Lurian Cordeiro Lula da Silva, que esperava do lado de fora, o enlaçou em um abraço efusivo. Outros familiares, amigos e correligionários logo o cercaram. Ao lado deles, Lula caminhou triunfal até próximo de uma grade de isolamento, onde posou rapidamente para fotos, com o braço direito levantado em riste e o punho cerrado, e à frente de uma bandeira que ostentava uma imagem estilizada do seu rosto, acompanhada da expressão: “Lula Inocente”. O maior líder do PT estava livre, 580 dias após ter sido preso, condenado em segunda instância no chamado “caso do triplex do Guarujá”. Ao mesmo tempo, a soltura consolidava o arrefecimento da “República de Curitiba”.

Dali, o ex-presidente foi conduzido à “Vigília Lula Livre”, um acampamento instalado cerca de trinta metros adiante, na rua frontal à PF, desde que o ex-presidente foi preso. Conforme passava pela multidão, o petista era ovacionado, enquanto alguns dos militantes choravam e tentavam tocá-lo. Em um palco erguido no fim da manhã, Lula discursou por quase 18 minutos. Falando de forma pausada, andando de um lado a outro, adotou uma performance que lembrava um comício. E como se estivesse em campanha, Lula optou por um tom ferino, que não poupou o presidente Jair Bolsonaro (PSL), o ministro da Justiça e ex-juiz, Sergio Moro, e o procurador Deltan Dallagnol, do Ministério Público Federal (MPF). A exemplo do que já vinha fazendo em entrevistas concedidas quando ainda estava preso, o petista voltou a alegar inocência. Assim como no discurso que proferiu no dia em que foi preso – em 7 de abril de 2018 –, Lula se referiu a si mesmo como “uma ideia”.

“Eu quero que vocês saibam que o lado mentiroso da Polícia Federal, que fez um inquérito contra mim, que o lado mentiroso e canalha do Ministério Público Federal, da força-tarefa [da Lava Jato] e o Moro, eles têm que saber que eles não prenderam um homem. Eles tentaram matar uma ideia. E uma ideia não desaparece”, disse. “Eu quero lutar para provar que, se existe uma quadrilha e um bando de mafioso neste país, é essa maracutaia que eles fizeram para tentar, liderados pela Rede Globo, criar a imagem de que o PT precisava ser criminalizado e que o Lula era bandido”, acrescentou.

Logo, o ex-presidente deixaria Curitiba para trás. Já na manhã seguinte, de sábado (9), embarcaria em um voo fretado com destino a São Paulo, onde a militância o aguardava. Lula voltaria a São Bernardo do Campo, São Paulo, reduto metalúrgico de onde emergiu como liderança sindical e política. Ainda em seu primeiro discurso após deixar a carceragem da PF, o petista apontou também que deve retomar suas caravanas pelo Brasil, deixando claro que pretende voltar à militância política e aos palanques. “Eu tenho vontade de voltar, porque esse país pode ser muito melhor na hora em que tiver um governo que não minta tanto pelo Twitter, como o Bolsonaro mente”, cutucou.

 

O pedido de soltura de Lula se baseou na decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que na quinta-feira (7) havia fixado novo entendimento em relação à prisão em segunda instância, voltando a admitir início do cumprimento de pena somente após as condenações terem transitado em julgado – esgotando possibilidades de recurso. Assim que o presidente do SFF, ministro Dias Toffoli proferiu seu voto, desempatando a matéria em seis votos a cinco, os militantes da “Vigília Lula Livre” comemoraram, com a sensação de que a soltura do ex-presidente nunca estivera tão perto. Já pela manhã de sexta-feira, o “Bom dia, presidente” – ato em que os acampados bradam treze saudações seguidas a Lula – contou com um coro de mais de duzentas vozes, volume bem maior que o usual. Logo, os advogados do ex-presidente entraram na sede da PF para uma audiência com o cliente ilustre. Enquanto isso, do lado de fora, mais e mais pessoas chegavam ao entorno, fosse em ônibus de caravanas do partido ou de movimentos sociais, fossem curitibanos com a expectativa de testemunhar a saída do líder petista. A concentração era tamanha que, ainda no fim da manhã, integrantes da própria “Vigília” instalaram grades de segurança, isolando a rua de acesso à PF. O “formigueiro”, como os próprios militantes se referem ao movimento, estava atiçado.

Logo no início da tarde, os advogados de Lula, Cristiano Zanin e Waleska Martins, chegaram ao prédio da Justiça Federal, localizado a cinco quilômetros da sede da PF. Após tomarem um longo chá de cadeira, foram recebidos em uma audiência de “quinze minutos” – como eles mesmo definiram – pelo juiz federal Danilo Pereira Júnior, a quem caberia decidir se o ex-presidente poderia deixar a prisão. Ao deixar o prédio, às 15h50, Zanin disse aos repórteres que apenas expôs ao magistrado sua argumentação e que pediu celeridade na decisão. Negou que já tivesse indícios de que o petista seria volto. Um sorriso contido no rosto do advogado, no entanto, denotava que a demanda seria atendida. Às 16h15, o juiz expediu o alvará, mandando colocar Lula em liberdade.

Pelo sistema de som instalado na “Vigília”, às 16h28 a locutora anunciou: “Gente, o juiz expediu o alvará. O Lula vai sair!”. A multidão explodiu em gritos e palavras de ordem. Enquanto todos os olhares se voltavam ao portão da PF, músicos e cantores se revezavam ao palco, interpretando canções como “Apesar de Você” (Chico Buarque), “Pra Não Dizer que Não Falei das Flores” (Geraldo Vandré) e “Massa Falida”(Duduca e Dalvan) – esta última, elogiada por Lula, em seu primeiro discurso. Paralelamente, junto à saída do prédio, começaram a se aglomerar familiares do ex-presidente, como Lurian, o neto Thiago Trindade, e a noiva Rosângela da Silva, a Janja, além de quadros reconhecidos do partido, como o ex-senador Lindbergh Farias e o ex-deputado Wadih Damous. Logo, todos estariam ao lado de Lula, no palco da “Vigília”, juntamente com outros petistas paraenses, como os ex-deputados Doutor Rosinha e Angelo Vanhoni.

 

O novo entendimento do STF, é claro, não se restringe ao ex-presidente, mas a todos os réus condenados em segunda instância que estão presos – e que não sejam alvo de outras condenações ou de medidas cautelares, como prisão preventiva. A decisão já afetou outros presos ilustres da Lava Jato: ainda na noite de sexta-feira, o ex-ministro José Dirceu foi posto em liberdade. O ex-tesoureiro do PT João Vaccari Neto – que desde 6 de setembro, cumpre pena em regime semiaberto, monitorado por uma tornozeleira eletrônica – também foi libertado. Um levantamento do MPF apontou que o posicionamento do Supremo pode mandar para as ruas, além de Lula, Zé Dirceu e de Vaccari, outros 34 condenados em segundo grau, entre presos já estavam no semiaberto e condenados que cumpriam pena no regime fechado. Entre os impactados pela decisão, estão o ex-diretor de Serviços da Petrobras Renato Duque, o lobista João Augusto Rezende Henriques – apontado como operador do MDB –, e o pecuarista José Carlos Bumlai. O ex-deputado Eduardo Cunha (MDB) e o ex-governador do Rio Sérgio Cabral vão continuar presos porque, apesar de a condenação de ambos não ter transitado em julgado, eles foram alvos de prisão preventiva. “Outros 307 denunciados, que aguardam julgamento em primeira instância, também poderão ser beneficiados, visto que só cumprirão pena depois de um longo período de trânsito do processo. O mesmo se aplica a parte dos 85 condenados já condenados em primeira instância e que aguardam o julgamento de recursos no tribunal”, consta de nota emitida pelo MPF. “A Força-Tarefa vê risco de retrocesso no combate à corrupção e à impunidade”, acrescentaram os procuradores da Lava Jato.

A soltura dos presos famosos e o enfraquecimento da Lava Jato selam o declínio da “República de Curitiba”, expressão que veio à tona em 16 de março de 2016, quanto o então juiz Sergio Moro tornou pública a gravação de uma ligação telefônica entre Lula e a então presidente Dilma Rousseff (PT), interceptada pela PF. “Eu, sinceramente, tô assustado com a República de Curitiba. Porque a partir de um juiz de primeira instância [Moro], tudo pode acontecer nesse país”, disse Lula. Posteriormente, Moro reconheceu que “errou” ao divulgar a gravação – o diálogo tinha ocorrido às 13h32, duas horas e dez minutos depois de o próprio magistrado ter determinado o fim do grampo. Para o grosso da opinião pública, no entanto, pouco importava. Na ocasião, a Lava Jato vivia seu auge em repercussão midiática e em apoio popular. Naquele mesmo 16 de março, em apoio à força-tarefa, um grupo de pessoas ergueu o que se chamou de “Acampamento da Justiça”, na praça que fica em frente ao prédio da Justiça Federal, em Curitiba. Ao longo dos meses seguintes, as barracas deram lugar a um contêiner que passou a funcionar como uma espécie de quartel-general do grupo, onde dezenas de pessoas permaneciam, sempre com camisetas verde e amarelas, distribuindo adesivos em que se lia: “Eu apoio a Lava Jato”. O local chegou a se tornar um ponto de visitação de turistas e fomentou um comércio aquecido de “Pixulecos” – bonecos que simbolizavam Lula, com roupa de presidiário – e camisetas com estampas do rosto de Moro e com frases, como: “República de Curitiba: aqui se cumpre a lei”.

O frisson em torno da Lava Jato atraiu até celebridades. Em agosto de 2016, três semanas antes da destituição de Dilma, uma comitiva formada pelos atores Victor Fasano, Luana Piovani, Lucinha Lins e Susana Vieira, além do cantor Raimundo Fagner, foi recebida por Moro, na sala da 13a Vara Federal de Curitiba. Os artistas levavam um pen-drive com assinaturas de outras pessoas do meio artístico, em apoio ao pacote das “Dez Medidas Contra a Corrupção”, iniciativa então encampada por Moro e Dallagnol. “Eu acho que as pessoas do Norte e do Nordeste não têm conhecimento do que está sendo feito aqui [na sede da Justiça Federal, em Curitiba]. (…) Tem que espalhar isso para o Brasil”, disse-me Suzana Vieira, na ocasião, apesar de seu colega Fagner ser nordestino. Naquele mesmo mês, em 31 de agosto, o “Acampamento da Justiça” foi um dos dois principais pontos em que a “República de Curitiba” comemorou a aprovação do impeachment de Dilma, reunindo centenas de pessoas.

Segundo seguranças da Justiça Federal, o acampamento foi se desmobilizando aos poucos, após a prisão de Lula e a eleição de Bolsonaro. Em julho – semanas após o início da publicação de mensagens trocadas por membros da Lava Jato –, a estrutura foi completamente desmontada. Na sexta-feira em que Lula foi solto, não se viu na praça um único apoiador da força-tarefa. A derradeira intervenção do grupo que permanecia ali era uma placa de cerca de três metros de altura, em favor da “CPI da Lava Toga”. No início da tarde, no entanto, a instalação foi deitada abaixo por um pequeno grupo de manifestantes que vestiam camisetas vermelhas. Ninguém reagiu.

Conforme aumentava em repercussão, a Lava Jato também colocava em evidência uma série de escritórios de direito da capital paranaense. Alguns advogados radicados em Curitiba chegaram a acumular a defesa de vários réus, como o Marlus Arns, que representou cerca de 25 implicados na operação e que costurou a delação de empreiteiros da Camargo Corrêa, como Paulo Augusto Santos, Dalton Avancini e Eduardo Leite. Outro defensor que ganhou projeção com a Lava Jato foi o advogado Adriano Bretas, que teve cerca de 15 clientes, entre os quais o ex-ministro Antonio Pallocci. Ambos não responderam aos pedidos de entrevista enviados pela piauí.

Por sua vez, o advogado Rafael Guedes de Castro, que integra a defesa do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha (MDB) atribui a projeção dos defensores da capital paranaense à “história de tradição e profissionalismo da advocacia criminal curitibana”. Apesar disso, no entanto, ele não deixa de apontar excessos cometidos pela Lava Jato. O defensor questiona o próprio rótulo “República de Curitiba” que, na avaliação dele foi “apropriado por uma parcela da sociedade inebriada pela publicidade opressiva” e que “não contribui em nada com a racionalidade e o equilíbrio que deve nortear a justiça”. Além disso, Guedes de Castro também é contundente ao criticar a glamourização de advogados que atuaram na defesa de réus da operação. “Não há nada o que comemorar. As prisões alongadas, decisões ilegais proferidas, excessos de acusação, utilização de performances meramente midiáticas da Polícia Federal, causaram dor e sofrimento a muitas famílias. O retrocesso em termos jurídicos e institucionais é evidente. A verdade da advocacia está na vocação e na luta contra o arbítrio”, apontou. “A publicidade opressiva das causas criminais expõe a pior faceta de uma sociedade, principalmente quando agentes estatais, que deveriam ter consciência das funções que ocupam, alimentam de forma absolutamente ilegal matérias jornalísticas. Isso traz evidente prejuízo, pois o que se pretende, na verdade, é a manipulação da opinião pública. Cria-se fora dos autos do processo as justificativas para condenações”, acrescentou.

A percepção é parecida à do diretor de Prerrogativas da seção paranaense da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Alexandre Salomão, disse que a categoria nunca se sentiu envaidecida pelo rótulo “República de Curitiba”. Pelo contrário: os advogados viam a expressão como uma distorção de uma frase retirada de contexto. Ele lembra que, apesar do enfraquecimento da Lava Jato, ainda há uma série de processos conexos tramitando na Justiça Federal do Paraná. Mesmo que os clientes renomados minguem, ele diz que a advocacia curitibana não será afetada por isso. “Não concordamos com a expressão ‘República de Curitiba’, porque ela vai contra a Constituição, como se Curitiba não fizesse parte da República Federativa do Brasil. Talvez a operação tenha trazido o foco da grande mídia pra cá, mas Curitiba sempre teve tradição jurídica”, disse.

 

Na manhã seguinte à soltura do ex-presidente, no sábado, militantes começavam a desmobilizar a “Vigília Lula Live”. Enquanto alguns varriam o chão, outros empilhavam cadeiras de plástico e encaixotavam toda sorte de utensílios. Em meio ao serviço, passavam em retrospecto os 580 dias que o acampamento permaneceu erguido no entorno da sede da PF. O metalúrgico aposentado Sebastião Curi, que havia se juntado ao grupo na mesma semana em que o líder do PT foi preso, ainda custava a acreditar naquilo que classificava como “uma vitória da justiça”. “Depois de tanta coisa, a gente tá saindo vitorioso. O Lula acabou se tornando cada vez maior e eles [da Lava Jato] foram ficando pequenos”, disse, com a fala entrecortada pelo choro. “Quando ele [Lula] saiu, a nossa sensação é de que tínhamos ganhado uma eleição ou uma Copa do Mundo. Todos nós aprendemos muito nesse período. A grande experiência da minha vida foi aqui”, avaliou, também em lágrimas, Rosane Silva, uma das coordenadoras do espaço.

Por enquanto, parte da estrutura vai permanecer no terreno – que é alugado –, pelo menos até que o PT e os movimentos sociais decidam o que fazer com o lugar. “Muita gente defende a compra do terreno e a criação de um memorial aqui. Outra corrente quer instalar um centro de formação política. Tudo isso vai ser deliberado nos próximos dias, inclusive com a opinião do Lula”, disse Silva. Não haverá, no entanto, a movimentação que os vizinhos se acostumaram a ver ao longo do último um ano e sete meses. “A gente vai manter uns três seguranças aqui, pra vigiar as coisas. E só”, disse a coordenadora.

No Empório Zambrano, praticamente o único ponto comercial nas imediações da PF, a rotina vai voltando à normalidade. Enquanto Lula esteve preso, as mesas do café-restaurante acabaram funcionando como ponto de reunião para o staff petista, antes das visitas e audiências com o ex-presidente. Dono do estabelecimento, Eduardo Vilas Boas se acostumou a receber os advogados Cristiano Zanin, Valeska Martins, Manoel Caetano e Luiz Carlos da Rocha, além de integrantes da cúpula do PT. Mais do que isso: o bistrô chegou a preparar grelhados “de reforço” ou marmitas com almoço executivo que seriam servidas ao ex-presidente – que, às quintas-feiras (dia de visita), almoçava na companhia da namorada. Entre os pratos, um dos clássicos da casa: bife de fígado acebolado. “Principalmente quando ela [Rosângela] entrou no circuito e começou a cuidar da alimentação dele, a coisa ficou mais intensa. Na maior parte das vezes, fazíamos grelhado, bife de chorizo. Frango grelhado também saía bem. Quando avisavam com antecedência, dava para preparar uma coisa especial, uma chuletinha”, contou o proprietário. Os pratos executivos custam entre 18 e 25 reais. O restaurante foi inaugurado em junho do ano passado, não de olho no público da vigília, mas no fluxo de advogados e pessoas que vão à PF tirar passaportes. Com o fim do acampamento, perde os fregueses ilustres ligados a Lula, mas, por outro lado, o dono espera passar a receber clientes que evitavam o empório por causa da proximidade com o ponto de militância petista. “Em relação ao movimento, não vai mudar muito. O público da vigília não vinha muito aqui. Vai fazer falta, porque a gente tinha uma certa afinidade com essas pessoas [advogados de Lula e políticos]. A gente se acostumou com eles aqui. Era divertido pelo movimento”, disse Vilas Boas.

Entre os moradores do entorno, a sensação era de alívio. A sede da PF fica no Santa Cândida, último bairro da área norte de Curitiba e que faz divisa com Colombo, município da região metropolitana. Trata-se de uma área essencialmente residencial e silenciosa, em que praticamente não há prédios e em que predominam casas de classe média. Com Lula em liberdade, a expectativa do comerciante Maurecir Soika, que mora no bairro há mais de vinte anos, é de voltar a gozar da tradicional tranquilidade local. Casado com uma mulher “anti-Lula”, ele relatou muitos momentos de tensão entre moradores e militantes, mas acrescentou que, com o passar do tempo, começou a aprender com as diferenças entre ele e os acampados. Enquanto, à distância, assistia ao desmonte da “Vigília”, o comerciante sentia como se aquela etapa da história tivesse chegado ao fim. “Para nós, vai ser um alívio. No começo, foi uma bagunça. Acampavam na minha calçada, mijavam na frente da minha casa. Mas acabou”, disse. “Eu não me meto muito em política. Parece que está todo mundo no mesmo pacote. Particularmente, fiquei muito contente quando o Bolsonaro ganhou. Parecia que a coisa ia melhorar… Agora, com a saída do Lula parece que é o fim da ‘República de Curitiba’. O negócio é tocar a vida…”, completou.