Dois maços

fumaça

Enquanto eu manobrava para estacionar na vaga de sempre, à esquina da lanchonete, percebi que você já me esperava ali, recostada ao poste. Estava de costas, mas nem isso nem o casaco longo que te caía até a metade das coxas me impediram de reconhecê-la. Pudera. O facho amarelado de luz da lâmpada de sódio a alumiava de cima para baixo, realçando o tom avermelhado dos seus indefectíveis cabelos, que se pronunciavam para além da boina que usava e que te conferia um certo ar blasé. Antes de eu apear do carro, fiz como sempre fazia: fiquei te observando através dos vidros um tanto embaçados e, dali, achei entre poética e teatral a forma lânguida como você levava o cigarro à boca e, após tragar com certa displicência, expirava com delicadeza a fumaça, que se dissipava aos poucos, em formas aneladas e confusas. Corri o olhar pelo seu corpo e só então me detive no seu pé esquerdo, inquieto. Com o calcanhar fixo, você executava movimentos contínuos, tocando o ponta dos sapatos continuamente no chão, feito um bate-estacas, numa frequência incrível de muitas vezes por segundo – cacoete pelo qual a sua ansiedade se manifestava.

Eu estava, se tanto, a dois passos de ti, quando você se virou, como se despertasse do transe em que se encontrava imersa. O abraço que eu começava a esboçar estancou quando você se antecipou em um movimento brusco, estendendo o braço esquerdo com a mão espalmada, denotando certa repulsa. Seus lábios trêmulos pronunciaram com dificuldade, quase num sussurro: “Acabou”. Assim que a última sílaba dessa única palavra acabou de morrer, você desatou num choro silencioso e úmido, com lágrimas grossas a descer pelo seu rosto feito sereno. Um tanto atordoado, busquei sinais ou outros elementos que me ajudassem a entender o que, de fato, acontecia. A sua mão trêmula segurando o cigarro aceso que deitava cinzas no chão; os mesmos brincos que você usava no dia em que nos conhecemos; o uniforme de garçonete por debaixo do casaco; a sua bolsa com o zíper aberto, qual você tivesse partido às pressas. Devo ter congelado sem reação, com feição de nada, porque senti como se um frio súbito me tirasse de órbita. Como se quisesse eliminar quaisquer dúvidas, você repetiu, mas desta vez com um quê de rispidez: “Acabou, está me ouvindo?”.

Foi como se uma fenda tivesse se aberto no tempo e me reconduzido a minutos atrás, quando eu estava saindo de casa. Assim que girei a chave na fechadura, dei de cara com dona Ézia, a vizinha sempre sorridente, que abria a porta para jogar o lixo fora. Enquanto eu a cumprimentava com um meneio de cabeça, o gato dela – amarelado e gorducho, de nome Tom – escapou por uma fresta e disparou em direção à rua. Um carro que acabara de dobrar a esquina freou a um átimo de passar por sobre bichano, o que arrancou um grito agudo da senhorinha. É como se eu já tivesse vivido aquela cena: “Déjà vu”, pensei. Imediatamente, um calafrio chispou meus ossos. Sempre associei déjà vu a um mau presságio que, invariavelmente, precede algo drástico. Tinha sido assim quando sofri aquele acidente na estrada vicinal e quando fui demitido do meu penúltimo emprego. Logo, no entanto, dona Ézia voltou com Tom aninhado em seu colo. “Está tudo bem, filho. Foi só um susto”, observou, afável. Com um movimento de mãos, afastei os pensamentos incômodos, trazendo de volta o pêndulo à razão. “Déjà vu… Que besteira a minha. Superstição pura”, murmurei para mim mesmo, enquanto punha a chave na ignição.

Quando voltei a mim, fiz menção de tomar a palavra, mas você se adiantou. “Acabou”, repetiu mais uma vez e virou as costas, com seu andar de corsa, partindo em direção ao lado oposto do fluxo de carros. Deixou comigo o cigarro fumado pela metade e ainda aceso, com uma marca de batom vermelho no filtro, um pouco abaixo do ponto onde estava grafada a logomarca do produto: três anéis entrelaçados. Tirei o chapéu e me sentei à sarjeta e, mesmo sem nunca antes ter fumado, levei o cigarro à boca e o consumi em tragadas vacilantes, como quem aprende como fazer. Tentava ver lógica nas formas da fumaça, enquanto pensava que era você que eu punha pra fora naquelas baforadas – e isso me deu certo alento. Quando terminei, ajeitei o chapéu na cabeça, empertiguei-me com dignidade e caminhei até o bar, no meio da quadra. Estendi a bituca à atendente: “Quero dois maços deste aqui”, pedi, apontando ao símbolo impresso no filtro. Meti-os maquinalmente no bolso no paletó. Desde então, tenho fumado com certa regularidade, como se me livrasse de ti aos poucos.

Curitiba, 21 de maio de 2020

“Butterfly”

butterflyTenho muitas cismas para com o inglês. Uma delas é insuperável: a sandice de se usar o mesmo verbo para “ser” e para “estar”. (Como bem pontuou Caetano, “gosto de ser e gosto de estar”, ora essa!). Outra bronca diz respeito a uma inaptidão minha, de não conseguir dobrar a língua para articular o “th”. Paciência… Mas, nos últimos tempos, tenho encasquetado mesmo é com o modo como a língua inglesa faz minguar a poesia de algumas palavras, tornando-as insossas.

O caso mais recente me veio às ideias ontem pela manhã, quase como epifania. Por algum motivo aleatório, pensei em “butterfly”. Só então me dei conta de que a palavra é formada por “butter” + “fly”. Manteiga que voa? Não é possível! Não pode ser!

Minha opinião é enviesada, eu sei. Mas note como é mais saboroso em português: borboleta. É como se cada sílaba batesse asas dentro da boca da gente, antes de ganhar forma e significado pelos ares: bor-bo-le-ta! De uma fuçada, vi que uma das teorias relaciona a origem etimológica da palavra a belo. Borboleta derivaria de “belbellita”, duplicação de “bellus”, no diminutivo (em “Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa”, de José Pedro Machado).

Borboleta também tem um apelo pra lá de poético em italiano. Em “O Carteiro e o Poeta”, o protagonista Mario Ruoppolo (o carteiro) havia acabado de aprender “fazer metáforas” com Pablo Neruda. Perdidamente apaixonado por Beatrice Russo, ele apela para a poesia: “Il tuo sorriso si expande come uma farfalla”, tenta, quando a bela passa. “Farfalla”. Quase um sussurro, tão suave quanto a própria borboleta.

A “farfalla” ajudou o carteiro a conquistar sua Beatrice. E se fosse “butterfly?”. Pobre Mario…