Adeus em mi menor

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A mais recente foto que tenho com o maestro é também a de que mais gosto. Foi tirada pela Cris Seciuk, no fim de maio. Crédito: Cristina Seciuk

 

Na última vez em que o visitei, como de costume, subi ao quarto número 222 sem ser anunciado. Desta vez, no entanto, já o encontrei aprumado, sentado à escrivaninha, posto a vasculhar uma pasta que continha partituras escritas a próprio punho em papeis amarelados pelo tempo, como se, com o ato, pudesse revolver a própria memória. Já trazia o chapéu panamá metido à cabeça e envergava seu paletó de veludo, que parecia vir bem a calhar naquela manhã de julho de ar gélido. Quando deu por mim, insistiu para que eu alcançasse uma cadeira de madeira ali perto e tomasse assento. Não quis, contudo, estender muito a prosa.

– Vamos descer ali embaixo? Eu queria pegar um pouco de sol – disse-me, um pouco adiante.

Conduzi-o a um banco no calçadão, quase em frente à entrada do hotel. Sentamo-nos lado a lado e ficamos ali, calados, vendo a manhã se findar com vagar, como se dispuséssemos de todo o tempo do mundo. Sabíamos, contudo, que a realidade nos apontava o contrário: em questão de dias, ele embarcaria rumo ao Rio de Janeiro, onde passaria a morar com uma das filhas. Aquela poderia, portanto, ser a nossa última conversa antes que ele partisse. Nem por isso nos pesamos de qualquer urgência ou angústia. Era um entendimento quase mudo – que música também tem muito de silêncio.

Ora ou outra, ele puxava assunto. Banalidades típicas de quem parece estar em paz. Observou, por exemplo, que aumentara o número de moradores de rua ali nos arredores, de modo que ele já não os conhecia pela feição ou pelo nome; contou um causo sobre o funcionário de uma loja ao lado; reclamou do frio; e elogiou o porte das mulheres que passavam pelo calçadão (“Uns mulherões enormes pacas. Parece que antigamente elas não eram tão grandes nem tão bonitas assim, não”). De quando em quando, algum passante o saudava – “bom dia, maestro” –, ao que ele respondia com um sorriso ou aceno de cabeça. Parecia pertencer àquela ruela de petit-pavé.

Perto do meio-dia, fiz alusão de me levantar para partir, ao que ele virou o rosto em minha direção e disse, com um meio-sorriso: “Já vai? Fica mais um pouco”.  Até então, eu nunca o havia visto reivindicar a presença de ninguém, afeito que é a fechar-se em seu mundo. Considerei o convite significativo, como um presságio de que aquela seria mesmo a última prosa antes do embarque. “Que seja, maestro”, respondi por fim, lisonjeado, ajeitando-me novamente no banco. Abri mão do meu almoço e permaneci ali, ao lado dele, até que, quase uma hora adiante, o dever me chamasse definitivamente.

Despedimo-nos sem cerimônia nem sentimentalismo, qual fôssemos nos ver novamente no dia seguinte. Se houvesse uma ou outra conversa mais, talvez ele desatasse a falar sobre João Gilberto ou escavasse alguma história dos tempos de parceria com Gebran Sabbag – como já havia feito nas dezenas e dezenas de prosas que tivemos (mais de trinta delas, gravadas em áudio) desde que me dispus a tentar resgatar sua biografia em livro. Com o tempo, percebi que havia me perdido na linha tênue que o Jornalismo insiste em traçar entre o repórter e a fonte. Tornamo-nos como amigos.

Só então entendi que é impossível entrevistá-lo, dentro do conceito que se tem de entrevista, com o jornalista fazendo as perguntas, dono da situação. O maestro só se entrega quando se sente parte e faz as revelações quando quer, quando menos se espera. Às vezes, a resposta para determinada pergunta só vai vir dias adiante, em meio a uma xícara de café ou a uma caminhada na praça. Dia desses, quando eu lhe disse que era ele quem conduzia as entrevistas, e não o oposto, ele riu: “Vai ver que é porque eu sou maestro, acostumado a reger orquestras, os músicos…”, disse, em tom de galhofa.

Em fins de maio, a Cris Seciuk – jornalista de peito aberto e fotógrafa oculta – também passou a visitá-lo, a fim de escrever sobre ele. Em uma dessas manhãs em que eu estava por lá, vi-a clicar uma série em que o maestro está a vasculhar partituras. Apareço em algumas das imagens e uma dessas é a de que mais gosto: estamos ele e eu, sorrindo com leveza. O ensaio da Cris parece ter captado a essência do personagem, que certa feita Alice Ruiz definiu com propriedade: “ele tem alma de passarinho”.

Recebi a notícia no meio da tarde de ontem: o maestro embarcaria naquela noite. Assim que encerrei expediente no jornal, acorri ao hotel, onde encontrei o porteiro sentado à porta. “Ele já foi tem mais de meia hora”, tascou, rispidamente. Telefonei ao Kito Pereira, seu grande amigo e fiel escudeiro, que me informou que a família achara por bem adiantar em uma hora a ida ao aeroporto, para garantir que não perderiam o voo. “Mas é isso. Tudo vai ficar bem”, tranquilizou-me.

Sob a garoa fina que caía, fiquei alguns minutos ali, petrificado por não ter conseguido me despedir. Fitando o banco vazio, lembrei-me de que, na última prosa com o maestro, eu divaguei que achava que o mi menor era o acorde mais triste que havia. O maestro entabulou uma explicação técnica, mencionando as terças e evocando a escala dórica, mas interrompeu o raciocínio do nada, com um movimento com as mãos, como se desistisse do próprio racionalismo teórico. “O mi menor é o mais triste, porque é o único que vai morrer no chão”, sacramentou, por fim. Enquanto voltava pela Rua XV quase deserta, eu pensei de novo no maestro e quase pude ouvir meu adeus em tom de mi menor.

 

Curitiba, 18 de julho de 2017

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